Os acontecimentos daquela noite tinham ficado a instigar-me por dentro.
Enquanto ia para casa, as imagens lá fora através do vidro sucediam-se vertiginosamente, sem lhes dar importância, recordava aquele momento vezes sem conta, em pormenor, e não conseguia afastar aquelas imagens da minha memória.
Não aguentaria confrontar-te naquele momento.
Como é que foste capaz?...
Honestidade não te teria feito mal nenhum.
Quando me dirigi novamente à mesa onde estava consegui passar mais uma vez despercebida e passados alguns minutos vi-te sair com ela de braço dado, como se nada se passasse. Não parecias nada incomodado, ate demasiado confiante, como se fosse a coisa mais natural do Mundo!
Consequentemente fez-me pensar então quem e que teria tocado a campainha, com tanta insistência, se não tinhas sido tu…
Enfim, não estava fácil aquela noite sem dúvida, alem de que a diversão tinha sido pouca no meio da surpresa e da desilusão, após a minha descoberta.
Um banho bem quente e relaxante vinha a calhar, sem dúvida, assim que chegasse a casa.
Uma noite bem dormida ainda mais, amanha teria mais um dia pela frente e não estava a conseguir pensar com alguma racionalidade.
Já no aroma dos sais que tinha espalhado na água quente, no borbulhar da água que não parava de correr, quase em perfeita sonolência, os pensamentos deram lugar agora a fantasias.
Mergulhava agora naquela sala novamente a dar de caras contigo e com a mulher que te acompanhava. Tu surpreso, sem reacção, não tardei em provocar-te com o olhar e com as minhas mãos que percorriam o teu corpo, alias ambos os corpos, o teu e o dela. Olhava para ambos alternadamente, tu não esperavas aquela atitude, eu não esperava aquela surpresa de vos encontrar ali, a outra, essa olhava-me com provocação.
Imaginava-te a mergulhares em mim, e a ela enquanto me beijava os seios, que chamavam por ela e pela língua que os seus lábios carnudos deixavam antever.
Tu parecias mais concentrado em penetrares as duas alternadamente enquanto me imaginavas a suga-la, aquela mulher que tu tão bem conhecias e que eu desconhecia a sua existência ate aquele dia.
Ela estava mais concentrada em mim, no gosto que eu teria, na vontade que tinha em me saborear e em saber que prazeres lhe proporcionaria.
A luxúria espalhou-se no ar através dos pensamentos de três pessoas que sem saberem partilhavam-se e que agora frente a frente não pareciam incomodadas com essas ideias e partilhas de experiencias, parecendo adivinhar quem e que teria cada pensamento que sobrevoava as nossas cabeças.
Pareceu-me ouvir um som de uma campainha.
Num restaurante? Hum… estranho.
Tocou novamente. Acordei do sonho que estava a ter.
Não, não estava no restaurante.
Era mesmo a minha campainha que estava a tocar.
Chegas calma.
Sem termo nem propósito
Fogo que arde sem fervor
Dor que açoita mas que não se sente
Paz fictícia que cessa
E que se funde no nós.
Ergue-se a voz
Solta-se no horizonte
O grito!
O ser aflito.
O poder da alma
Não se interpreta
Não se define,
Apenas se extingue
Na multidão.
Olho para ti
Olho-te em vão.
Não sinto nada.
Apenas um vazio extenso.
Como o mar.
Como a sorte.
Como a vida,
Que traz a seguir a Morte.
Voltei a retocar a maquilhagem.
A noite lá fora parecia adivinhar-se calma, mas fria, um frio a que já me estava a acostumar, seco que cortava a pele grosseiramente.
Já tinha dado tempo suficiente para que quem quer que fosse que tivesse tocado à porta, possivelmente tu, já tivesse abandonado o prédio para que não houvesse surpresas.
Antes de sair tinha telefonado a uma amiga que por acaso ate estava disponível, e que acedeu logo no jantar. Tivera sorte, pois na maioria das vezes a sua agenda estava demasiado preenchida.
Combinamos nos encontrar no restaurante que tínhamos falado. Era um restaurante muito simpático, gerido por um casal de emigrantes que tinham chegado há relativamente pouco tempo, mas que mantinham no seu espaço um requinte próprio muito ligado as origens do local que tinham estado imensos anos a trabalhar. Nada era deixado ao acaso, as toalhas impecavelmente brancas, as velas espalhadas por toda a divisão ampla mas com alguns recantos que escondiam pequenas mesas para 2 pessoas, a própria luz que circunda aquele espaço provinham dos candeeiros que mais pareciam tochas cravadas nas paredes, as paredes em pedra algo toscas e desenquadradas contrastava com o chão de madeira envernizado, o próprio balcão todo ele em madeira dava um ar requinatdo à 1ª sala onde nos encontrávamos, os empregados de mesa impecavelmente vestidos a rigor mas sem cair em exagero, deixava adivinhar juntamente com a musica ambiente um clima de envolvência e requinte de forma que se torna bastante acolhedor e aconchegante uma refeição ali. Atrai muitos casais de namorados principalmente ao jantar para fazerem as suas refeições, quer fosse uma época especial ou não, pois todo o ambiente inspira ao romantismo.
A parte disso tudo, lá estávamos nós, as duas, numa mesa perto da janela que dava vista para o mar e para a varanda que separava a terra do oceano.
Cada vez que nos encontrávamos era como se fosse ontem que tínhamos estado juntas a conversar sobre o trabalho, ou ate dos mais recentes casos amorosos.
Tal como eu, ela tinha a sua vida e tinha decidido não a partilhar pelo menos na mesma casa com ninguém e assim permanecíamos solteiras com toda a independência possível, e que o dinheiro e o trabalho o permitisse. Sempre animadas, sempre bem dispostas, levávamos a vida assim tanto eu como ela, na desportiva, dai talvez a nossa amizade ser já de alguns anos e nenhuma de nos estar disposta a quebrar, fosse lá por que motivo fosse…
Decidi ir ate à casa de banho lavar as mãos, que ficava do outro lado da sala de jantar. Ao descer um lance de dois degraus que de certa forma separava as duas salas, olhei em redor, e não queria acreditar no que estava agora a ver, mesmo ali a minha frente, naquele instante em que caminhava em direcção ao fundo da sala.
O meu coração disparou, no segundo seguinte quase que nem me segurava em pé com a desilusão, o nervosismo, a raiva e o desapontamento, e desejei não estar ali.
Numa das mesas mais recônditas dessa sala, ali estavas tu, muito bem acompanhado, com um sorriso alegre e descontraído, já na fase das sobremesas!
Fiquei de tal modo nervosa que quase que corri apressadamente para a casa de banho e esperei alguns minutos para me recompor. Não. Não podia ser verdade! Será que vi bem, pensava eu, ainda não querendo acreditar no que tinha visto! Eras mesmo tu, será que a minha vista não me tinha atraiçoado?!!
Meu Deus.
Tive que esperar alguns minutos para me recompor, não direi totalmente, mas o suficiente para atravessar aquela sala sem dar nas vistas e muito menos que fosse vista por ti.
Pensei em surpreende-lo, apanha-lo completamente desprevenido, mas a imagem desse momento, já me causava magoa, ódio, revolta, repulsa, tudo o que de mau uma situação destas traria.
Não. Iria aguardar pelo momento certo.
Abraças-te na imensidão
Da noite.
Esperas que o dia morra,
Para te ergueres finalmente.
No canto do olho sobra uma lágrima
Afastas o espírito que reviveu.
Algo se perdeu.
Pintas a vida cinzenta, violenta
Deixas-me aqui no solar da porta.
A vida passa.
O chão se abre.
Escondes-te da luz
Pois o sol não nasce.
Não queres a vida.
Não queres a morte.
Apenas a lágrima.
Que um dia não choraste.
Ouves o grito
Ouves a voz.
Esperas ficar no vazio.
Olhas a tempestade
Que aqui pernoitou.
Esquece o abrigo.
Volta do perigo.
Vem ter comigo.
Vem mostrar-me a luz.